LAZER
E URBANIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
Luiz Octávio de Lima Camargo
Doutor
em Ciências da Educação pela Univ. Sorbonne-Paris 5 e em História e Filosofia
da Educação pela FE-USP. Membro do Grupo de Pesquisa em Turismo, Hotelaria e
Gastronomia e Professor do Programa de Mestrado em Moda, Cultura e Arte do
Centro Universitário SENAC (São Paulo) – octacam@uol.com.br e luiz.lcamargo@sp.senac.br
Quando diferentes representantes de diferentes países
são designados para discutir o lazer (ou qualquer outro tema) quer se saber o
que é semelhante mas sobretudo o que é diferente no modelo de viver o lazer em
cada uma dessas sociedades. A questão de fundo que me cabe, então, é: quais são
as semelhanças e quais são as diferenças na forma como vivem o lazer, de um
lado, as sociedades ditas desenvolvidas (européias e norte-americanas) e, de
outro, nossas sociedades na América Latina ?
A questão é legítima, ainda que de difícil resposta com
a precisão desejada. Do ponto de vista metodológico, há que se fazer uma tentativa
de sociologia comparada, tanto mais arriscada, do ponto de vista dos
resultados, na medida em que se é
obrigado a trabalhar com dados secundários produzidos segundo esquemas de
observação empírica diferentes. As
ciladas também são muitas : reducionismos, extrapolações imprudentes. Corre-se
sobretudo o risco de cede às tentações de criar singularidades subjetivas e
ingênuas, que constrangem não apenas nossos interlocutores como aqueles que
representamos.
Não podemos esquecer-nos de que a América Latina é a
reunião de dois grupos de sociedades, conforme a referência às linguas e aos
colonizadores : de língua espanhola, rue reúne mais de vinte países, do México ao
Norte, até a Argentina e Chile ao Sul, cada um deles tendo peculiaridades não
apenas nas suas regiões como em relação aos outros; e de língua portuguesa, com
apenas um país, o Brasil, mas de dimensões continentais e com
profundas diferenças culturais no seu interior.
Uma dificuldade adicional é que minha principal
referência de observação é a cidade de São Paulo, a mais dinâmica do ponto de
vista econômico e cultural do país, meu campo de pesquisa. As reflexões aqui referem-se principalmente da
sociedade brasileira, em particular da cidade de São Paulo. Mas, e a América Latina ? Estou consciente de que se trata de um desafio que assumi um pouco
imprudentemente e de que a única alternativa que me resta é de me colocar num
plano conveniente de generalidade, esforçando-me, de qualquer forma em trazer
reflexões relevantes sobre o tema. Pergunto-me, mesmo assim, se meus
compatriotas das outras regiões do país e se pesquisadores de outros países da
América Latina se sentirão confortáveis com minha análise.
Minha hipótese, no plano de generalidade que a dimensão
e a complexidade do terreno exigem, é
que sejam as semelhanças sejam as diferenças no lazer vivido nas grandes cidades entre as diferentes
sociedades da América Latina e dos países ocidentais ditos desenvolvidos
derivam-se mais das semelhanças e diferenças dos processos de urbanização do
que do estágio de industrialização. A cidade de São Paulo – e certamente outras
haverá no Brasil e na América Latina – é o terreno exemplar para a demonstração
desta hipótese.
Mesmo nesse plano de generalidade, a hipótese não é banal,
já que se situa a contracorrente da
sociologia do lazer, quase que inteiramente contaminada por uma perspectiva que a quer apenas o resultado das
novas condições de vida criadas pela revolução industrial. No mínimo, é preciso
esclarecer que esta escolha obriga a uma mudança de quadro referencial
teórico : não mais a sociologia do trabalho, mas a sociologia da cultura. Mais adiante, voltar-se-á a este assunto.
O plano de minha apresentação é simples : partirei
de uma análise centrada nos dados empíricos conhecidos na cidade de São Paulo,
tentando compará-los com o que se conhece sobre a prática do lazer em geral, a
partir de três categorias – tempo, espaço e atividade. Em seguida, colocarei a
questão da experiência lúdica vivida no lazer, mais do que da atividade, com a
ajuda de sociólogos clássicos brasileiros que se colocaram a questão de nossas
raízes culturais. Em seguida, voltarei ao terreno empírico, para tentar
esclarecer ao máximo a extensão e os limites de minha hipótese.
Homogeneidade cultural e fraqueza econômica
Se ficarmos do lado da ciência dita nomotética, aquela
que observa os fatos sociais e estabelece correlações, deve-se analisar o lazer
d ponto de vista das suas três manifestações clássicas – tempo, espaço e
atividade. Para tanto, deparamo-nos sobretudo com dados quantitativos, de
sondagens, cifres obtidas com diferentes concepções de amostragem e com objetos
de estudo que não são comparáveis entre si. Todos os planos iniciais de
comparação de dados, portanto, fracassaram. Isto posto, avançaremos com bastante timidez. Em resumo, pode-se dizer que a impressão mais geral que se impõe é
de uma homogeneidade de tendências – tendência de crescimento de práticas de
lazer, sobretudo ao ar livre, de saída de casa para espetáculos e de diminuição
de assistência à televisão em benefício de outras práticas midiáticas, como a Internet, com cifras sempre mais pobres do nosso lado. Em
outras palavras, tudo se passa como se se tratasse do mesmo lazer, sendo o
nosso mais pobre, mais tímido, ainda que
não se saiba explicar exatamente o aspecto forte ou fraco que, contudo,
sentimos profundamente. O nosso lazer é, assim, marcado por estatísticas mais
modestas, quando se se refere a aspectos julgados positivos, e mais pesadas,
quando se fala da interação com os problemas paralelos da violência, da marginalidade
social, da pobreza.
É um truísmo afirmar que a mundialização/globalização
empurram nessas direções, para o melhor e para o pior. Para o melhor, a
acessibilidade à cultura universal é agora possível e as novas tecnologias criam
novas condições de desenvolvimento, mais
possíveis que as que se colocavam para o acesso à industrialização. Para o pior, lembremo-nos de que a palavra
globalização fala do neoliberalismo econômico, um novo jogo de forças no plano
político e econômico, cujas conseqüências para nós tem sido trágicas. Infelizmente,
não é o momento de alongar-se sobre esse tema, ainda que eu esteja de acordo. Pode-se,
ao menos, lembrar que aí está uma das explicações para as nossas estatísticas
mais pesadas : mais violência nos
parques, nos estádios, mais pobreza ostensiva nos espaços de lazer em geral e
nos espaços de circulação urbana.
Coloco, assim, desde o início, minha hipótese sobre esta
questão, em três assertivas : primeiramente, nós temos cifras mais
tímidas, como resultado de nossa maior fraqueza econômica ; mas, em
segundo lugar, elas caminham dentro da mesma tendência que no Norte e, em
terceiro lugar, os resultados são sempre decepcionantes, ao Norte e ao Sul, se
tomarmos como referência os ideais da chamada democracia cultural.
Comecemos, então, olhando as sondagens e os dados
quantitativos sobre o tempo de lazer. Diga-se que a única técnica de pesquisa
que fornece informações seguras é a de orçamento-tempo. Bastante difundida na
Europa e na América do Norte, nós temos, no Brasil, uma única pesquisa,
realizada no Rio de Janeiro, em 1974, cujos resultados foram publicados em 1975[1]. É inútil, então, tentar estabelecer comparações.
Então, o que dizer da América Latina ? Ainda que
tendo como referência um patamar mais baixo, de jornadas de trabalho mais
longas e duras, pode-se observar a mesma
tendência à flexibilização da jornada de trabalho que está levando a melhor sobre
as iniciativas, sobretudo do lado dos sindicatos, em favor da redução da
jornada de trabalho. Aqui não há como negar : a jornada de trabalho é
sempre a principal referência para o tempo de lazer. Assim, a inversão
histórica de que falou Marcuse, já cumprida na América do Norte e em diversos
países da Europa[2],
com mais tempo de lazer que de trabalho, somente acontece quando a jornada de
trabalho média da população ativa cai abaixo das 40 horas. Ora, não há
notícias, em parte alguma da América Latina, de um setor econômico cujas
empresas tenham baixado essa jornada abaixo desse limite.
Então, entre nós, essa inversão ainda não se produziu.
No Brasil[3], uma legislação que era
bastante avançada até os anos 1960, evoluiu muito pouco. A redução da jornada de
trabalho paralisou-se nas 44 horas semanais, ainda que as 40 horas semanais
sejam a regra para os setores mais dinâmicos da economia. O aumento dos dias de
férias paralisou-se nos trinta dias anuais por ano de trabalho. Na aposentaria
ao contrário, houve perdas : esta se afastou, mas o que aconteceu foi
sobretudo uma correção de rumo mais do que aumento do tempo de trabalho. A
antiga legislação confundia tempo de trabalho (com ou sem contribuição ao
sistema de seguridade social), situação que criou aposentados com menos de 50
anos. Hoje estamos, mais ou menos, no mesmo plano dos países do Norte : 35
anos de contribuição para os homens, 30 para as mulheres.
Quais são as perspectivas para o futuro ? Agora, em lugar da
redução da jornada de trabalho, a palavra de ordem é a sua flexibilização. É
bem verdade que há um movimento muito ativo, do lado sindical, pela redução da
jornada oficial para 40 horas semanais, o que levaria os setores mais dinâmicos
a abaixar para menos do que as atuais 40 horas, quando, como se disse acima, a
jornada de lazer torna-se maior do que a do trabalho. O problema é que, tal
como aconteceu na Europa, levanta-se sempre o argumento jamais provado de que a
redução da jornada implica, automaticamente, em aumento dos postos de trabalho
e, então, redução do desemprego.
O caminho da flexibilização designa movimentos diferentes. O
primeiro é bastante conhecido em toda parte : é os dos horários flexíveis,
que permitem ao trabalhador administrar seu tempo em função das peripécias do
cotidiano, podendo trabalhar mais num dia e menos num outro, por conta de seus
compromissos pessoais externos ao trabalho.
O segundo é o da redução ou aumento da jornada semanal segundo as
demandas da produção. A inovação consiste em criar um banco de horas : se
a demanda aumenta, o trabalhador pode ter uma jornada de 44 horas, as horas
adicionais devendo ser pagas como horas extras. Quando a demanda diminui, a
jornada pode baixar a 36 horas (nos casos extremos, antes da demissão do
contingente de trabalhadores considerado excessivo, pode-se recorrer a férias
coletivas, a serem calculadas em função de um outro banco de horas, o das
férias).
Será preciso acrescentar que estes dois movimentos jogam em favor do
lazer ? Efetivamente, lazer e família são os beneficiários maiores do
primeiro. E a contabilidade do segundo é mais difícil de negociar do lado dos
interesses da empresa. Nesse caso, a balança tende a pender do lado do tempo
livre do trabalhador.
Mas há um outro movimento, mais selvagem, que pode representar uma
ameaça ao lazer : o da desregulamentação da jornada de trabalho,
permitindo-se às empresas contratar ou demitir trabalhadores segundo regras
mais simples. Neste caso, são os beneficios de salário e de tempo livre dos
trabalhadores que são ameaçados : redução ou mesmo eliminação do repouso
semanal remunerado e férias remuneradas, ao lado de piores condições de tempo e
de salário para a aposentadoria. Neste
modelo de flexibilização, o tempo de lazer não é ameaçado na sua extensão mas
na sua natureza.
A massa de tempo livre pode até mesmo aumentar, dado que o
trabalhador apenas executará a jornada necessária à demanda de produção. Jornadas
inferiores a 40 semanais, sazonalidade do emprego, bicos tenderão a aumentar. Mas,
falando como Dumazedier, dir-se-á que o aumento ocorre não no tempo livre sadio
economicamente – o tempo liberado do trabalho – mas de um tempo livre
economicamente doente, já que se trata de um inocupado pela economia. Mencione-se
ainda o atual panorama, já degradado, no qual além das cifras crescentes de
desemprego entre jovens e mulheres, há um percentual crescente de indivíduos
destes segmentos que não entram nas estatísticas, porque não estão à procura de
emprego e cifras também crescentes de trabalhadores informais, que trabalham
sem registro e, portanto, sem os benefícios exigidos das empresas por lei.
Uma característica do tempo livre moderno é de ser pago pelo
trabalho. Se este tempo livre não é mais o resultado da força mas da fraqueza
econômica, tornando-se uma ameaça para o orçamento pessoal, como reagirá o
trabalhador ? A situação torna-se mais
complicada dado que certas autoridades e líderes de opinião bem posicionados na
mídia consideram um absurdo o fato de um trabalhador ganhar o mesmo se trabalha
ou se está em férias.
Será preciso acrescentar que a tendência de aumento deste tempo
livre « doente » é a mesma na Comunidade Européia, a se levar em
conta um diagnóstico bem recente sobre a perspectiva de redução da jornada de
trabalho[4] que
aposta também na flexibilização e não na continuidade da diminuição da jornada
de trabalho ?
Do lado das atividades, observa-se que a freqüência às
salas de teatro, cinema, concertos, centros culturais, restaurantes, parques
verdes, a prática esportiva entre adultos, todas as práticas de lazer estão em
crescimento, tal como na Europa e América do Norte, mas sempe com cifras mais
pobres.
A sondagem mais completa sobre
as práticas e aspirações culturais no tempo de lazer foi realizada há mais de
dez anos, em 1995, e publicada em 1996[5].
Esta sondagem mostrou que a cada 100 habitantes da cidade de São Paulo com 15 ou
mais anos de idade, 88 declaram como prática diária, a assistência à tevê, 83 a
escuta de rádio, 68 a leitura de
jornais, 57 a leitura de revistas. Mais: 52 afirmaram ter lido ao menos um
livro ao longo dos últimos 12 meses (apenas 10 afirmaram ter lido mais de 6
livros no mesmo período).
As práticas ligadas à escrita são, como em todo lugar,
mais modestas: 40 em cada 100 entrevistados declarou nunca ter escrito ou muito
raramento, 26 que somente escreviam cartas, 28 que apenas escreviam por razões
escolares ou profissionais, 7 que escreviam poesias e crônicas. O gosto pela
música foi a única unamidade observada na mostra, sendo que 55 preferiam a
música popular brasileira, 33 preferiam
a sertaneja, 15 a internacional, 13 o rock-pop e 9 a música erudita; 4 à chaque
100 declararam aventurar-se na composição musical e 14 a prática de um
instrumento musical.
A hospitadade doméstica é outro fato relevante, tendo-se
mostrado outra unanimidade da amostra, com práticas tais como visitar e receber
parentes, amigos, vizinhos. Ademais, 65 em
cada 100 declararam ter um hobby (23
a culinária, 14 o cuidado com plantas e 15 com animais de estimação. Lembremo-nos
de que até aqui estamos falando de atividades típicas do lar.
Fora do espaço doméstica, observou-se a freqüência ao
menos anual de espaços verdes (70 a cada 100), ao menos mensal às salas de
cinema (12%), ao menos uma vez por ano às salas de teatro (11%) e mesmo ópera
(1%), aos espetáculos (21% ao menos uma vez no mês anterior), museus e exposições
artísticas (10% ao menos uma vez no ano anterior).
A cada 100 entrevistados, 56 declaram participar de
associações em geral, sejam sindicados (2%), associações escolares (1%), clubes recreativos (10%), associações
religiosas católicas (26%), e de outras religiões (19%).
Mais : 52 em cada 100 declararam uma prática física
regular: 37% preferem a caminhada e a corrida, 36% futebol, 17% a ginástica,
15% o vôlei, basquete ou handebol, 13% o ciclismo, 12% la natação, 5,5% a dança,
7% as práticas de tipo oriental. Os espaços preferidos são os parques, praças e
ruas (50%), as academias (22%) et a própria casa (9%). Finalmente, 24 % fizeram
ao menos uma viagem de lazer nos últimos 12 meses, sendo que 2% para outros países.
Que significam estas cifras ? Bem se vê que se trata de um resultado mais moderno do que o que se
observa no Norte ! Mas, tanto ao Norte como ao Sul, as cifras estão em nível
baixo, principalmente entre as camadas mais pobres da população, se se tem como
referência as taxas que dizem respeito à participação no ritual político, no
emprego e na saúde. Em todos os países, a democratização dos bens culturais
continua um mito, se comparada com os resultados da democracia política ou
social. Mas, entre nós, as cifras são ainda mais pobres e a distância entre
essas dimensões de uma democracia são ainda maiores.
Do ponto de vista do espaço, de novo partindo de
condições socioeconômicas de vida mais difíceis entre nós, pode-se falar de uma paisagem semelhante de
equipamentos. Os espaços se repetem na América Latina, da mesma forma que nas
sociedades ditas desenvolvidas : diversos tipos de parques verdes, parques
temáticos, shopping-centers, centros socioculturais, estadios, salas de teatro,
cinema, etc. La diferença é sempre de quantidade e qualidade dos espaços, mas, repita-se, não
de natureza.
Certamente, temos cidades que se julgam preparadas para
o passeio, com centros comerciais, parques verdes, espaços para a degustação
gastronômica, mas a quantidade e a qualidade
inferior em relação ao que é oferecido no Norte é sempre visível.
Falta mencionar um fato subestimado nas análises de uso
do tempo : a predominância da casa como espaço de lazer. Na América Latina,
como de qualquer forma também na Europa
e na América do Norte, encontramos, de um lado, a casa, a fortaleza do lar e as
atividades que aí se desenrolam, na metade mediatizadas (tevê, radio, jornais,
livros, revistas, internet) e na metade não mediatizadas (hospitalidade doméstica,
cuidados com animais e plantas, todas as espécies de bricolagem e trabalhos
manuais) que constituem práticas cotidianas, sendo que as atividades de lazer
extradoméstico (parques, cinema, testro, espetáculo, turismo de prazer) ocorrem
apenas dentro de uma participação mensal ou anual.
Infelizmente, não se observa reflexões sobre esse fato
tão importante – a casa como espaço de lazer – o que nos leva a dizer que, de
fato, todas as políticas de lazer, de tourisme e mesmo de cultura enfrentam o
mesmo desafio, de retirar o indivíduo da fortaleza do lar, e convidá-lo a
expor-se fora de casa a outros contatos pessoais, a atividades menos
conformistas, etc.
Homogeneidade de tendências, fraqueza econômica. O turista europeu ou norte-americaino pode bem
ter esta impressão ao acaso de suas experiências entre nós, quando passeia
pelas nossas cidades e observa as más condições de limpeza, de circulação, de
poluição, sobretudo se a nossa violência endêmica mais forte do que a que
observa ao Norte, atinge-o sob a forma de um roubo ou de uma agressão. Será
preciso lembrar aqui o papel sempre ambivalente das mídias e de seu poder
sempre exercido de amplificar a percepção positiva ou negativa de um evento
qualquer ?
A cidade latino-americana torna-se uma cópia mais pobre,
ou mesmo uma caricatura da cidade européia ou norte-americana.
Estes aspectos que a prática nos mostra são, repitâmo-lo
uma vez mais, diferenças de proporção e não de natureza do fenômeno. Mas as
diferenças ficam neste plano das estatísticas ?
O turista que nos visita, se ele se esconde na torre de
marfim à qual ele é condenado pelo trade turístico
pode bem ter esta impressão. Mas, se ele entra em contato com os seus
anfitriões, sobretudo se ele conhece formas de hospitalidade doméstica,
certamente mudará de idéia. Isto
ocorre não apenas em nossas cidades ! Na verdade,
isto acontece em todas as cidades do mundo, mas, em nossas cidade – e aqui
estamos falando de toda a América Latina, ele notará em primeiro lugar uma
maior acessibilidade e abertura para com ele da parte dos residentes locais. Ele
pode notar também que se trata de uma abertura mais superficial. É usual, entre
nós, dizer que o acesso à hospitalidade doméstica, na Europa e na América do
Norte é mais difícil ao visitante, mas que, em compensação, é um sinal de
amizade e que, entre nós, é mais fácil, mas, em compensação, mais superficial.
De qualquer maneira, quem conhece certas manifestações
culturais dos países latino-americanos ou de cidades como Rio de Janeiro, Lima,
Caracas, Mexico, seja como turista, seja através da mídia, tem, pelo menos, a
intuição de uma diferença. Este indivíduo não aceitará ouvir de um sociólogo do
lazer que o lazer nestas cidades da América Latina é mais ou menos igual ao de
Paris, Roma, Varsóvia ou Nova Iorque, mesmo se as sondagens aqui e lá mostram a
mesma tendência. Ele terá razão de se espantar ! Ele não viu pela televisão que
na cidade do México há trabalhadores que, na pausa de trabalho, divertem-se em
tomar como forma de relaxamento choques elétricos de muitas voltagens – fracas
mas nem tanto ? Ele se pergunta sobre as razões que levam um trabalhador do Rio
de Janeiro a gastar em um mês (não três dias !!!) de carnaval tudo o que
economizou ao longo do ano ! Ele viu também pessoalmente ou através da mídia
festas em Cuzco, Rio e em toda a América Latina, nas quais multidões
gigantescas, cujo número se contava em centenas de milhares ou mesmo de milhões
de pessoas que pareciam à vontade em estruturas de organização muito frágeis ! E
as gargalhadas a todo momento, às vezes, sem razão evidente ? « Isto não se vê entre nós » pensará ele.
Como explicar estes fatos bizarros ? A pobreza,
que é um signo dominantes de todas as sociedades ? A cor da pele ?
Ademais
En plus, os manuais de turismo reforçam um imaginário
muito rígido dos dois lados. Por exemplo, a um brasileiro que é convidado para
uma festa em qualquer cidade da Europa ou América do Norte, eles recomendarão
muita atenção : é preciso chegar sempre na hora marcada, ir embora à
também na hora marcada, prestar atenção às regras de etiqueta, não constranger
seus anfitriões com gargalhadas, com o familiar segurar pelos braços, pois as
pessoas lá não gostam de contato físico, de exteriorização das emoções; não se
deve dirigir a palavra a alguém sem ter sido formalmente apresentado, pois as
pessoas são mais formais, nunca perguntar sobre questões da intimidade, nunca
se deve ultrapassar uma porta sem ser convidado, ou autorizado pelo seu
anfitrião. Um europeu lerá como recomendações para o caso de ser convidado para
uma festa familiar no Brasil, que ele não deve ser de forma alguma pontual, que
o melhor é chegar com um certo atraso (15 a 30 minutos) pois seus anfitriões
também não estarão prontos na hora marcada; que ele não se espante se as
pessoas o abraçam e o apertam demasiadamente; que, ao contrário, devem tentar
retribuir; nenhum problema, ao contrário, em comer e beber muito ! Quanto à
hora de ir embora, também não deverá ficar impaciente. Aliás, ele deverá
considerar sempre a possibilidade de lá ficar e dormir, seja porque bebeu muito
seja porque seu anfitrião ignora o dever de dar atenção a todos os convidados e
resolve monopolizá-lo durante toda a noite !
Será que esta distinção é verdadeira ? Não nos
esqueçamos de que a psicologia dos povos nunca provou sua força. Poder-se-á
mesmo dizer que um médico polonês terá certamente mais afinidade com um colega
médico brasileiro do que com um cunhado comerciante.
Este fatos, na verdade, fazem parte de um certo
folclore, mas são reveladores de diferenças não no nível da prática codificada,
mas certamente no nível da experiência lúdica vivida no lazer (pois, como dizia
Dumazedier, em todo lazer existe ao menos uma busca do lúdico). O que um
filósofo como Julián Marias queria dizer ao afirmar que há mais alegria no
Mercado de Olinda (cidade conurbada com Recife, Brasil) que em toda a Suiça ?
Oo como compreender a afirmação do sociólogo italiano Domenico de Masi de que a
gente escuta mais gargalhas em um dia no Brasil do que em uma semana na Itália
e em um mês inteiro na Suécia ?
Infelizmente, estas diferenças no nível da experiência
lúdica não se prestam tão facilmente à observação sociológica como os dados quantitativos. Estas diferenças
– sutis e apreensíveis apenas dentro de um observação com instrumentos mais
refinados, de tipo qualitativo, que é
também mais difícil de « dar o ar de ser ciência », de ser
sistematizada com categorias claras, de tal forma é próxima do discurso
literário – existem em todas as dimensões de uma sociedade, não apenas na
comparação entre a cultura lúdica das sociedades do Norte do Sul como no interior dos grupos que constituem
cada uma dessas sociedades.
Neste momento, não se pode mais fugir à questão que surge
em todos os congressos e encontros que acontecem em torno do tema : de que
lazer se fala ? Aqui somos obrigados a mudar o quadro de referência
teórico. Não são mais os sociólogos do lazer que tem a palavra, mas os
clássicos de nossa sociologia, que refletiram sobre as raízes culturais do
país, que estudaram a transição entre sociedade tradicional, moderna e pós-moderna. Ficamos
mais próximos dos que refletiram sobre o gozo coletivo que acontece além das
estatísticas, sobre a permanência dos valores que brotam da inspiração de nossa
cultura tradicional.
A noção de lazer, como bem lembrou o sociólogo canadense
do lazer Gilles Pronovost[6], tem impressões digitais claras: ela foi criada numa perspectiva
euroocidentocentrista. Isto posto, não se falará a partir daqui do mesmo lazer,
como um conjunto de atividades codificadas como físicas, manuais, intelectuais,
artísticas e sociais. Estas atividades são produto da civilização urbana que
triunfou sobre a rural. São atividades relativamente autônomas em relação ao
controle socio-espiritual, sociofamiliar e sóciopolítico. O que se deve
observar, bem além da prática exterior, é a interação que acontece entre
modelos vindos da tradição no confronto com a cultura contemporânea. O ponto de
apoio desta nova perspectiva não será
mais a oposição lazer-trabalho. O trabalho também passará a ser tratado no
quadro de transição entre tradição e modernidade.
O homem cordial
Se continuamos a lamentar os
equívocos de uma sociologia centrada no econômico e, no caso do lazer, centrada
no trabalho, é o fato de que ela associa instantamente lazer e países desenvolvidos
economicamente. Daí que a tendência para os sociólogos de sociedades que não se
sentem confortáveis dentro deste rótulo – o caso de todas as sociedades
latino-americanas – é de acentuar as diferenças no lazer que vêm da economia,
sempre mais fraca. E como o instinto econômico é um
vício, inclusive na ciência (talvez ainda mais na ciência, como bem sublinhou
Bachelard falando do ter como o único instinto humano), sempre se cai em
explicações que tomam a dimensão econômica como eixo. Somos mais pobres, portanto
temos cifras mais tímidas em todos os domínios, inclusive o lazer, e problemas
mais graves.
Assim, é meu dever deixar claro o caminho de minha
reflexão. E, aqui, deixo clara minha única diferença epistemológica para com
meu mestre e pai espiritual, Joffre Dumazedier. Ainda que partindo dos
problemas da educação popular, Joffre Dumazedier[7] concebeu o lazer por oposição ao trabalho.
Aceitando o risco de esquematizar um pensamento que às
vezes é criticado justamente por seu esquematismo, pode-se assim resumir a
dinâmica produtora do lazer para Dumazedier. Trata-se de um tempo moderno, que
se distingue da ludicidade da sociedade tradicional, produzido por uma dupla
revolução : de um lado, uma revolução técnico-científica que permitiu
produzir mais em se trabalhando menos, liberando horas no dia a dia, na semana
(fim de semana), no ano (férias) e durante a existência (aposentadoria) ;
de outro, uma revolução ética e estética, que permitiu a transformação quase
que total desse tempo livre em tempo voltado ao gozo, em tempo de lazer, contra
as aspirações dos reformadores da época, que pensavam em mais vida familiar,
mais escola e mais participação sociopolítica em partidos e sindicatos, e no
culto.
Nesta perspectiva, a predominância da força da primeira
revolução é nítida. É a
primeira que delimita a segunda. Ele certamente pagou o
preço do paradigma de sua época, marcado pela noção marxista de domínio da
infra-estrutura sobre a super-estrutura. O econômico, assim, preside ao cultural. Ele era de
tal forma consciente desse paradigma que recomendava a nós, seus alunos,
começar sempre pela gênese econômica do lazer. Esta dependência, em Dumazedier
e outros analistas de sua época, produziu, para se dizer o mínimo, uma
sociologia do lazer vigiada pela sociologia do trabalho.
Não se trata de negar a importância do econômico e do
trabalho sobre o lazer em toda parte. Mas, se esta é a única perspectiva,
fica-se sempre a questão que, aliás, foi a questão de minha tese de
doutorado : se o lazer é um produto das sociedades ditas desenvolvidas,
como compreendê-lo nas sociedades ditas em vias de desenvolvimento. ? Como
explicar que, numa cidade como São Paulo, quando chegou a industrialização no
fim do séc. XIX , todas as manifestações culturais do lazer moderno já estavam
instaladas – as primeiras manifestações do lazer midiático, as primeiras
iniciativas para o passeio como o comércio, os restaurantes, as sorveterias, os
parques verdes, os clubes esportivos e recreativos e mesmo as primeiras
instituições de controle sociocultural[8]
?
O lazer moderno são seria, assim, um produto sobretudo
do processo de urbanização, com as práticas emergindo dentro das condições nas
quais a cidade se constitui ? Esta sociologia do lazer produzida pela
sociologia do trabalho tem pouca chance de nos trazer dados para compreender a
gênese do lazer nas cidades das sociedades ditas « emergentes », « não desenvolvidas
» ou, simplesmente, mais pobres. No máximo, como é usual, ela nos leva a dizer
que a revolução industrial criou não o lazer mas as condições para a diminuição
da jornada de trabalho e a conquista de um tempo liberado para difusão da
prática do lazer.
A verdadeira questão é,
pois : quais diferenças em nosso
processo de industrialização produziram
quais condições culturais específicas para a prática do lazer ?
Isto posto, traremos a
contribuição de outros pesquisadores, em particular os nomes já citados de Gilberto
Freyre et Sérgio Buarque de Holanda, para quem a interação que se produziu
entre nós entre sociedade rural (tradicional) e sociedade urbana (moderna) é
original e, antes de produzir efeitos econômicos, deve ser analisado no plano
da própria cultura. Que estes nossos mestres sociólogos nos ensinam sobre esta
questão ?Ambos se centraram na questão das nossas raízes culturais na
América Latina. Aqui se privilegiam este dois, mas certamente haverá outros no
Brasil e na América Latina.
Gilberto Freyre[9]
fala de nossa raiz ibérica, que nos proporciona maior sensibilidade à fruição
do espaço, em oposição a uma raiz anglosaxã, que resulta em maior sensibilidade
ao tempo.
Para ele, nosso atraso
industrial é paradoxal, pois « foram as atividades econômicas dos portugueses
e espanhóis na Ásia, África e América que permitiram ao capitalismo europeu
enveredar pelo caminho novo da industrialização »[10].
A explicação deste paradoxo vem do fato que « no séc. XVI, os navegantes e descobridores ibéricos
tinham um sentido de tempo e de espaço diferente dos de outros europeus na
mesma época (...) eles eram mais avançados na sua concepção de espaço e menos
avançados na sua concepção do tempo »[11].
Os ibéricos tinham « um sentido
pré-industrial do tempo, não associado à produção e ao dinheiro ( enquanto que)
a concepção anglosaxã conseguiu identificar tempo e dinheiro »[12].
Para os ibéricos, « as pessoas e as coisas eram uma constante em uma muito
lenta evolução da tríade passado-presente e futuro »[13]
, até mesmo uma fusão destes três tempos[14].
Os ibéricos, colonizadores e colonizados « tinham e têm ainda uma
concepção de tempo típica da civilização cristã, feita não de relógios
indicando as horas, minutos e segundos, como entre os anglosaxões, mas de sinos
nas igrejas soando apenas no alvorecer, ao meio dia e ao entardecer » uma
concepção de tempo difícil para a produção industrial »[15].
Esta menor sensibilidade ao
tempo é compensada por uma maior sabedoria na fruição do espaço. Esta fruição
do espaço entre os ibéricos é lúdica, marcada pela fascinação e pelo gosto de
se sentir fascinado. Se, para os ingleses, holandeses e mesmo para os calvinistas
franceses da época os povos ameríndios eram apenas povos atrasados sem
interesse para os europeus civilizados, para os ibéricos « os índios que
assistiam à missa na sua presença no
meio da floresta (eram) pessoas verdadeiramente interessadas nesta demonstração
religiosa e, portanto, potencialmente cristãos e civilizados (...) assim como
as mulheres vermelhas ameríndias eram consideradas belas, lembrando um pouco
suas próprias mulheres de sangue mourisco »[16].
Para os ibéricos, o índio não era um órfão de Deus, como para os anglosaxões,
mas seres privilegiado que Deus não tinha expulsado do paraíso. Ao contrário,
era num paraíso ora redescoberto que eles viviam.
O elogio de Freyre aos
mestiços e à vida nos trópicos torna-se, assim, uma reivindicação de um
humanismo no qual o trabalho não viesse a destruir a existência e para que
« contrariamente às sociedades tidas como mais produtivas de nossa época »
a verdadeira questão é « por que deixar as delícias do repouso apenas para
o futuro ? »[17].
Este tema do paraíso foi
retomado por Holanda[18],
para ele um mito fundador, o paraíso que fascinou os europeus, sobretudo os ibéricos
d séc. XVI, no qual tudo é possível (como lembrava um ditado da época, « não
existe pecado abaixo do Equador »). Mas sua maior contribuição para nosso
tema foi sua noção de homem cordial[19]. Esta palavra, tomada no seu senso comum, pode
induzir em erro. Não
se trata do homem gentil, sorridente, sem agressividade, mas de um indivíduo
que está perdido em algum ponto da transição da sociedade rural (que, entre
nós, foi a dominante até os anos 1960) e a urbana, e, em consequência, dotado de
uma cultura misturada com elementos da sociabilidade tradicional (marcada pelo
gosto da proxemia e mesmo da intimidade) e da sociabilidade urbana (marcada pela
distância, pela etiqueta). Do ponto de vista da
vida em sociedade, esta cordialidade implica em alguns atributos daquilo
que ele chama o caráter do povo brasileiro :
a) Recusa do ritualismo social e, em
conseqüência, incorporação de um ritualismo religioso superficial – aceita-se o
ritual social desde que ele não sufoque a intimidade, valor maior da
sociabilidade
b) O privilégio do prenome em relação ao
sobrenome - tal qual nas zonas rurais,
onde as relações primárias supõem intimidade com o interlocutor, não há necessidade
de sobrenome familiar
c) O gosto pelo diminutivo – para ele, o modo
brasileiro de demonstrar intimidade com alguém ou com algo é simplesmente
acrescentar à palavra o sufixo que designa para nós o diminutivo « inho »
- quando se lê o nome dos jogadores de uma equipe brasileira apenas se vêem
prenomes, muitos dos quais com este sufixo
d) O gosto pelo contato físico - enlaçar, beijar,
segurar as mãos, os braços, eis algumas atitudes de um sul-americano que chocam
nossos anfitriões de outros países.
Holanda inspirou e continua a
inspirar todo um setor da antropologia e da sociologia brasileira, sendo os
nomes mais conhecidos na atualidade Antônio Cândido de Mello e Souza[20],
Roberto da Matta[21],
Lilian Schwarcz[22].
E sobre a América
Latina ? Tudo o que se pode dizer em um nível conveniente de generalidade
é que é preciso pensar sempre num processo de urbanização recente e pouco
controlado. Ao longo de quatro ou cinco gerações, as pessoas deixaram o meio
rural e, dado que todas estas sociedades têm o mesmo sistema de concentração do
poder num governo central, dirigiram-se para as grandes cidades (eis porque nos
referimos aqui a este tipo de cidade), que chegavam a multiplicar por quatro o
número de seus habitantes em uma década, como foi o caso da cidade de São Paulo,
que de 1890 a
1900, viu sua população crescer de 64 mil
para inacreditáveis 240 mil. É preciso acrescentar que a organização
urbana no Brasil sempre foi ainda mais caótica que no resto da América Latina,
já que as posturas originárias da Espanha eram, ainda ssim, um pouco mais
definidas que no reino português.
Ademais, quando a cidade se
torna o centro da vida em sociedade, movimento que começou no Brasil nos anos
1850 e tornou-se dominante apenas nos anos 1960, além de fazer parte de um
processo recente e caótico, oferece modelos de vida opostos do ponto de vista da
ludicidade. A antiga sociedade governada pelo rural, de inspiração católica, era
fortemente ancorada no lúdico : uma população livre que não aceita o
trabalho manual e tentava viver segundo um princípio de ociosidade que talvez
nem mesmo a civilização grega tenha atingido com tal plenitude, segundo as
palavras do próprio Holanda, uma população escrava negra e índia cuja
ludicidade trazia a marca das suas origens, e, para todos, 120 dias santos,
fora os domingos, proibidos ao trabalho e cheios de festas, às vezes mesmo para
os escravos. Para completar este cenário, é preciso mencionar (e aqui se fala
sobretudo da sociedade brasileira), a formidável miscegenação que se produziu.
Os modelos de prática do lazer
assim como do trabalho e da participação sociopolítica certamente devem ser também analisados no contexto dest
processo de urbanização que ainda não se consolidou. Continuamos sempre meio
urbanos e meio rurais. Quais são as conseqüências disso, especificamente para o
lazer ?
Neste ponto de nossa reflexão,
voltamos ao terreno, tentando mostrar que a análise usual sobre a exclusão
social das periferias urbanas pobres da América Latina é reducionista, esquecendo
a singularidade dos aspectos culturais. Um novo olhar, desta feita acentuando o
lazer.
A explosão da festa
Podemos dizer que esta sociabilidade meio rural e meio
urbana é um traço de todas as cidades da América Latina ? Como esta sociabilidade intervém no lazer
da população das grandes cidades ?
Comecemos por uma generalidade : se se analisa o
lazer vivido nas grandes cidades do mundo ocidental (inclusive América Latina),
percebêmo-lo ao mesmo tempo semelhante e diferente : semelhante no sentido
de que é produto do mesmo processo de civilização, para retomar a noção e as
reflexões de Norbert Elias[23], para quem a urbanidade, a condição de homem civilizado, é um
conjunto de regras para tudo o que diz respeito ao viver junto e que, ao cabo e
ao fim, são apenas a negação do instintivo, a marca do homem rural; diferente
segundo as diferentes condições sociais que sustentaram esse processo.
Em toda parte, observa-se o mesmo peso do lazer consumo,
voltado à distinção social, ao lado de um lazer buscado pelas pessoas como
forma de aprimoramento pessoal; em toda parte, enfatiza-se o peso da indústria
do lazer e de seus modelos comerciais que se difundem na velocidade da Internet ;
em toda parte observam-se, também, iniciativas de controle social do tempo de
lazer, que buscam corrigir as conseqüências que se estimam negativas desse
processo; em toda parte, finalmente, observa-se, ao lado da importação de
modelos vindos dos centros urbanos mais dinâmicos do ponto de vista cultural, que
a originalidade das inovações no lazer em relação à mundialização cultural,
alimenta-se sobretudo da tradição.
Mais do que de modelos de lazer, é preciso falar de
modelos de hospitalidade urbana. A cidade moderna estruturou-se desde o fim do
séc. XVIII sobre a filosofia inglesa do public
walk. Assim, a cidade torna-se espaço de acolhimento para as pessoas que
querem passear, um espaço concebido para que seus habitantes possam ao mesmo
tempo olhar a paisagem física e humana e serem vistas pelas outras. Ver e ser visto. As lojas, os centros
comerciais, os parques, as salas de cinema, os restaurantes, os bares, etc.
são, ao cabo e ao fim, ocasião e
estímulo ao passeio dentro das regras da urbanidade. Em
resumo : o imigrante vindo de qualquer parte recebe o título honorífico de
cidadão, como signo honorífico de pertencença à cidade, quando, na qualidade de
pai de família, com sua esposa e filhos, todos bem vestidos, todos juntos
mostram-se capazes de circular obedecendo às regras de urbanidade[24]..
Pode-se dizer que este processo está quase inteiramente
desenvolvido nas cidades da Europa e da América do Norte. Que se passa na América Latina ?
Si exceptuarmos algumas cidades da Argentina e Chile,
marcadas por uma urbanidade consolidada, de tipo europeu, pode-se dizer que na
América Latina há uma hospitalidade urbana marcada de um sinal meio rural, meio
urbana, que produz o homem cordial mais do que o homem civilizado, com sinais
de miséria e todas as suas conseqüências. A primeira parte diz respeito à
evolução local como núcleo urbano ; a segundo, ao fraco impacto das
políticas públicas em geral, incluindo as do lazer, sobre o conjunto da
população das grandes cidades, o que, por sua vez, é conseqüência do estágio de
desenvolvimento econômico.
As periferias urbanas nas grandes cidades da América
Latina criam-se de forma relativamente autônoma em relação ao conjunto da
cidade e aos poderes públicos. Promotores inescrupulosos ainda conseguem criar
loteamentos irregulares, onde as pessoas se instalam conforme os parcos
recursos o permitem. Esta realidade não é exceção e sim a regra em todas as
periferias urbanas da grandes cidades e dizem respeito à maioria de sua
população.
As políticas urbanas, responsáveis pelos serviços de
higiene, saúde, transporte, educação, etc. chegam não como direito e condição
de urbanidade, mas sobretudo como exceção, ao acaso da capacidade de pressão
política que os núcleos atingem. No melhor dos casos tornam-se territórios bem
definidos, com os quais os locais se identificam, verdadeiras comunidades no sentido
normativo do termo, capazes de assimilar grupos que se intitulam ou são
designados como diferentes, quem sabe como marginais. No pior dos casos, o
vazio das políticas públicas pode permitir a produção de cultura inteiramente
autônoma em relação à cidade, resultante de sua cultura tradicional de origem
recente e não tendo como relação com a cultura exterior senão os meios de
massa.
É inútil acrescentar que esta situação é o melhor caldo
de cultura ao mesmo tempo para todo tipo de patologias sociais da diferença, voltadas
à violência, ao crime, mas também de inovações culturais que podem, por sua
vez, ao acaso da interlocução com os outros inovadores da classe média mais
esclarecida, transformarem-se em modelos para toda a cidade.
Nesse mesmo nível de generalidade, que dizer sobre as
práticas de lazer destas periferias urbanas pobres onde habita a maior parte da
população das grandes cidades ? As sondagens, ao menos no Brasil, são
feitas em cima de atividades codificadas como de lazer : prática física e esportiva,
visita aos museus, salas de concerto, de cinema, de teatro, assistência à tevê,
escuta de radio, praticas de hospitalidade doméstica, cuidados com plantas e
com animais de estimação, etc. Temos resultados para o centro e as periferias,
para as regiões mais ricas e mais pobres.
As estatísticas mostram o mesmo que acontece em todo o
mundo ocidental : as taxas de prática sobretudo das atividades mais
onerosas são menores na razão direta da distância que as separa ao mesmo tempo geográfica e culturalmente em
relação ao centro mais cultivado da cidade e
da distância econômica em relação aos segmentos mais ricos. Mas, o que
se deve destacar não é o que esta diferença qualitativa revela mas sobretudo o
que ela esconde. Uma pesquisa já clássica entre nós[25] mostrou que as respostas no bairro periférico
estudado resultavam não da prática efetiva mas sim do que os entrevistados
julgavam ser uma boa resposta. Assim, em lugar de respostas tais como
freqüência aos parques, às salas de cinema, deviam ser lidas outras atividades,
aquelas que celebram o « pedaço », entendido como aquele espaço da
cidade ao qual o entrevistado pertencia. Essas práticas traduzem-se nas formas
criadas ao acaso das iniciativas, mal ou bem intencionadas (quanto mais o
« pedaço » está distante do alcance das políticas públicas, tanto
maiores as chances de que essas iniciativas sejam mal intencionadas), tendo
sempre como traço comum, em graus cuja intensidade pode variar segundo o tempo,
a festividade. Daí resulta que com a aproximação do final do dia, da semana, e,
sobretudo, das datas de celebração coletiva (Natal, Páscoa, Corpus
Christi, reveillon, carnaval, etc.), acontece,
em meio às práticas observáveis nos quatro cantos do mundo, aquilo que se pode
chamar de busca da festa, que pode acontecer numa festa em sentido estrito ou
num clima festivo (cores, barulho, excitação) nas ruas, nos bares, nas casas,
nas excursões à praia. Daí que ser festivo torna-se, mais do que estar num meio
festivo, ser festivo, o que designa não mais uma realidade observável, mas um
valor desejável, talvez mesmo uma obrigação, uma regra social..
Como explicar de outra forma as novas festas que se
criam entre nós de um dia para outro e que ao fim de quatro ou cinco anos
passam a fazer parte dos calendários de eventos de uma cidade ? Como explicar
que o Carnaval não designa mais hoje os quatro dias dias rituais antes dos
quarenta dias da quarema, mas um atributo ou mesmo uma parte, sempre a final, de toda e qualquer reunião festiva ? Há outras sociedades tão inventivas em
matéria de festa ?
Em realidade, se se caminha do centro de uma grande
cidade na direção da periferia, à medida que se avança, encontra-se um lazer
cada vez mais misturado de práticas codificadas e não codificadas, que, por sua
vez, resultam de uma mistura entre uma cultura contemporânea, vinda quase que
inteiramente das mídias, e da cultura tradicional, quase sempre uma releitura
desta. Aqui pode ser observada uma criatividade que brota das raízes, marcadas
da alegria, quem sabe, da qual falou Julián Marias e que é o signo da
permanência da cultura tradicional.
Questões finais
Não existe uma conclusão fácil a propor ao final desta
reflexão. Entretanto,
sinto-me no dever de destacar alguns pontos.
Em primeiro lugar, eu me pergunto se a diferença entre o
lazer vivido entre nós e nos países ditos desenvolvidos foi fixada com clareza
e se foi bem compreendida. Acredito que existe ainda um equívoco a ser
eliminada, sobre o sentido de noções tais como festa, festivo e festividade. Temo
que a ambigüidade destas palavras possa impedir uma maior clareza de minha
apresentação.
É preciso hoje distinguir bem o sentido tradicional e o
sentido contemporâneo da noção de festa. De um lado existe a festa antiga,
rural, vivida pela população como ruptura do cotidian, ou mesmo como inversão
como no Carnaval tradicional, quase sempre associada ao rito socioespiritual. Festa
em oposição a vida cotidiana, para retomar a expressão de Agnès Villadary[26] : oposição entre sagrado e profano, entre o tédio e a alegria,
entre o cinzento e o colorido, o conhecido e a aventura, etc. Este sentido da
festa, predominante na société rurale, acompanha os migrantes para a cidade,
onde pode se transformar ou mesmo desaparecer, à medida em que a urbanidade se
instala, que o trabalho impõe uma nova concepção de tempo, que os meios de
comunicação o banalizam. As antigas práticas tornam-se folclore. Quanto mais se
consolida o urbano, mais se instala um novo sentido de festa na sociedade.
O que é a festa hoje ? Nesta situação de modernidade
liquide[27], em que vivemos, a festa se mistura ao cotidiano. Este sentido
líquido da festa, festa como estado de espírito, penetra em todos os cantos do
social : no trabalho, na circulação, na vida política, no culto e também
no lazer, que se torna seu templo. Espera-se que sejamos festivos no
escritório, no lar e, sobretudo, no tempo de lazer.
Estes fatos são observáveis em todo o mundo ocidental,
da mesma forma que o culto ao passado, à tradição pode ser observado em todos
os planos do cotidiano, sobretudo, em relação ao que discutimos aqui, na
alimentação e no lazer. Há hoje, em todas as sociedades, uma infinidade de estudos sobre a expansão do
sentido de festa contemporânea.
Onde estão as nossas diferenças ? Nós temos mais
exclusão, mais violência, taxas de participação cultural mais fracas, uma
hospitalidade urbano menos impregnada das regras da urbanidade, do sonho da
vida moderna, mas, em compensação, nós estamos ainda contaminados pela cultura
tradicional.
Derivado do fato de nossa urbanização mais recente, mais
caótica e, em consequência, do fato de
que uma grande parte de nossa população, já que não é cuidada pela cidade em
tese obrigada a acolhê-la, vive ainda o imaginario de uma cultura traditional
cheia do sentido da festa, com mais corporeidade não domesticada. Este espírito
de festa avança da periferia para o centro, com o que há de melhor e de pior.
A periferia dialoga com o centro da cidade. Nós não
podemos nos fixar numa separação rígida, no plano cultural, entre as categorias
centro e periferia, já que é exatamente da interação que se produz que resulta
a criatividade em todos os planos, sobretudo na música e no futebol, para ficar
nos campos em que somos estimados estar na ponta.
Não é hora de se deter neste ponto, mas não se pode
evitar mencionar a importância dos animadores e criadores culturais que fazem o
melhor possível em favor deste diálogo entre o contemporâneo e o tradicional.
Não se trata de citar nomes, pois o importante a registrar é que são eles que
sustentam a renovação da cultura cotidiana e, assim, a inovação cultural, face
ao vazio institucional existente. Enquanto não tivermos políticas públicas
sólidas, instituições sólidas, voltadas à criação cultural, tanto mais seremos
dependentes deste homens de ação que, contudo, são verdadeiros heróis..
Paradoxalmente, durante os anos 1950, o tempo
tradicional contaminado pelo sentido da festa era considerado uma dificuldade a
ser superada no caminho do desenvolvimento, na direção de uma industrialização
que se estimava urgente. Para o melhor e o pior, nós não alacançamos este
objetivo. Para o pior, continuamos com a etiqueta de país emergente, com todos
os demônios que acompanham esta expressão. Para o melhor, nós temos
manifestações culturais originais. Para o pior, basta olhar nossas cidades. Para
o melhor, esta cultura tradicional, a se crer nos economistas do turismo e do
desenvolvimento, torna-se hoje um recurso econômico. Todas as ações de
valorização do patrimônio cultural inspiram-se nesta crença.
Tudo se passa como se, para falar como Sérgio Buarque de
Holanda, mais a cordialidade com face
lúdica e menos a etiqueta com a sua face séria torna-se a regra de uma
urbanidade de duas faces. De um lado, ela é contagiada pela alegria, feita de
riso. De outro, sendo o lúdico mais flexível em relação às regras, esta
urbanidade abre a porta às patologias da
diferença e deve aceitar as conseqüências.
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[1] DE SOUZA, Amauri. As 24 horas do carioca. Rio : IUPERJ, 1976 (texte ronéotypé)
[2] PRONOVOST, Gilles. Lazer, desenvolvimento social,
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[5] CAMARGO, Luiz Octávio de Lima. Educação
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[6] Lazer, desenvolvimento
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[7] DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia empírica
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[8] CAMARGO,
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São Paulo. In COSTA, Lamartine. Atlas do esporte no Brasil. Rio:
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[9]
On refere ici à son article On the
iberian concept of time in The
American Scholar, vol. 3, nº 32, 1963, p. 415/430.
[10]
Idem, ibidem, p. 430
[12]
Idem, ibidem, p. 418
[13] Idem, ibidem, p. 422
[14]
Idem, ibidem, p. 426
[15]Idem, ibidem, p. 430
[16] Idem, ibidem, p. 422
[17] Novo mundo nos trópicos. São
Paulo : Edusp, 1971, p.12
[18] BUARQUE DE HOLANDA,
Sérgio. Visões do paraíso. São Paulo : Brasiliense,
1974
[21]
Carnavais, malandros e heróis: para uma
sociologia do malandro brasileiro. Rio: Zahar, 1978.
[23] ELIAS, Norbert. O processo civilizador. 2 vols. Rio : Zahar, 1994
[24] PANZINI, Franco. Per i piaceri del
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jardino pubblico in Europa dalle origini al XX secolo. Bologna : Zanichelli, 1993; CHADWICK, George
F. The park and the town. London : The Architectural
Press, 1996
[25] MAGNANI. José Guilherme C. A festa no pedaço: cultura popular e lazer
na cidade de São Paulo . São Paulo: Brasiliense, 1984
[26] VILLADARY, Agnes. Fête et vie quotidienne. Paris : Ed. Ouvrières, 1968
[27] BAUMAN, Zygmunt. A
modernidade líquida. Rio: Zahar, 2001
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